Em mais uma demonstração de seu ímpeto totalitário, o presidente da República, Jair Bolsonaro, participou de manifestações que clamaram pelo fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal e pela edição de um novo “AI-5” – o símbolo, por excelência, do período mais sombrio da ditadura militar do Brasil.
Não havia ambiguidade sobre a mensagem política desses atos: em frente ao quartel-general do Exército em Brasília, gritava-se, de modo exaltado, em favor do uso ilegítimo da força contra as instituições brasileiras, de modo concentrar todos os poderes na figura da pessoa do Presidente da República.
O leitor, indignado a justo título com os acontecimentos políticos dos últimos anos, poderá certamente fazer uma série de perguntas e objeções. Mas não há corrupção no Congresso Nacional? Mesmo o mais ingênuo dos brasileiros certamente responderá que sim. Mas os parlamentares não atuam muitas vezes em causa própria, em vez de defenderem o interesse coletivo?
À evidência, a resposta afirmativa impõe-se com contundência. Mas o Supremo Tribunal Federal não decidiu, ao menos em algumas vezes, de modo injusto? Qualquer professor de direito, com o menor resquício de espírito crítico, não poderá dizer o contrário. Mas as instituições brasileiras não atuam, em diferentes ocasiões, para perpetuar e aprofundar os seus próprios privilégios? Os espíritos mais lúcidos não haverão de negar essa obviedade.
E, então, indagará o leitor: diante de tantos defeitos, de tantas imperfeições, de tanta ignomínia, que nos chocam, não é chegada a hora de darmos um basta, de apontarmos uma arma para as nossas instituições e de fecharmos tudo? A resposta é um não veemente! Não, a solução não é, em absoluto e em nenhuma circunstância, fechar o Congresso Nacional e o STF.
Na ausência desses órgãos da República, todos os poderes estarão concentrados em uma pessoa, estarão submetidos às fantasias, aos caprichos, aos rompantes autoritários de uma única pessoa. Não haverá qualquer limite para que o Presidente da República abuse de seu poder, conceda benefícios imorais aos seus amigos e familiares e persiga implacavelmente as pessoas que lhe são mais críticas.
Sem um regime constitucional, não há liberdade de imprensa para que os desmandos e a corrupção dos governantes cheguem ao conhecimento da opinião pública. Sem um regime constitucional, não há parlamento que possa fiscalizar e cobrar o Poder Executivo. Sem um regime constitucional, não há uma corte suprema que tenha poderes para coibir o arbítrio dos governantes e julgar com independência os crimes praticados pelas altas autoridades e seus familiares. É apenas um regime constitucional que permite que todos os poderes sejam vigiados e controlados e que todos os seus defeitos sejam amplamente publicados e expostos ao juízo crítico dos cidadãos.
Reitera-se, não há o que questionar e tergiversar: as instituições brasileiras apresentam inúmeros defeitos. Cabe-nos a tarefa de criticarmos, com severidade, essas mazelas e lutarmos, com vigor, por indispensáveis aprimoramentos e reformas institucionais. Todavia, convém não termos ilusões: o presidente da República não propugna pelos aperfeiçoamentos de nossas instituições. Ela quer, tão simplesmente, intimidá-las, achincalhá-las, destruí-las, deixando caminho livre para a truculência e a violência política e para o uso do poder em seu exclusivo benefício e de sua família.
O aspecto de nossas instituições que desagrada o Presidente da República não é a corrupção e os privilégios. Aposentado precocemente do Exército e tendo sido parlamentar durante decênios, ele próprio defendeu os privilégios mais escandalosos – como a pensão vitalícia para as filhas de militares falecidos – e esbaldou-se em práticas ostensivas de patrimonialismo, como usar o seu gabinete parlamentar para dar empregos públicos a parentes e a amigos.
Na verdade, o que incomoda o Presidente da República é um Poder Judiciário e um Ministério Público suficientemente independentes para processar o seu filho por desvio de dinheiro público, acusado de manter um esquema assaz primário de lavagem de dinheiro.
O que lhe desagrada é um Senado Federal que não lhe seja submisso, negando-lhe a aprovação de seu outro filho para o alto cargo de embaixador em Washington.
O que lhe desagrada é uma imprensa assertiva e investigativa, que não se intimida em criticá-lo, em expor um governo desastroso e os escândalos de seus ministros e familiares.
O que lhe desagrada são governadores e prefeitos que têm a autonomia e a coragem política para destoar da sua negligência criminosa frente a pior crise sanitária do século.
A nova família imperial considera-se dona do Brasil, a ponto de querer governá-lo segundo o seu exclusivo arbítrio, sem prestar contas a ninguém, a não ser a uma minoria de aduladores fanáticos. Sem instituições fortes, o Brasil estará submetido aos instintos mais baixos de um pequeno grupo familiar, às suas paranoias, às suas perseguições mais odiosas, à sua inveja de ministros que lhe sejam superiores, à sua obsessão em manter a todo custo o poder mais absoluto.
É imperioso lembrar, mais uma vez, a advertência tantas vezes repetida de Lord Acton: se todo o poder tende a corromper, o poder absoluto corrompe absolutamente.
Não nos enganemos: a nossa tradição política é autoritária e as tentações para os piores despotismos encontram aqui um terreno fértil para se desenvolverem. Como disse Octávio Mangabeira após o restabelecimento das liberdades públicas com o fim da ditadura do Estado Novo, a democracia no Brasil não é uma árvore que dê abrigo e sombra, mas uma planta tenra, que exige todo o cuidado para medrar e crescer. O golpe militar de 64 que sucedeu o período democrático da Constituição de 1946 lhe deu razão.
A história do direito constitucional brasileiro é marcada por chefes militares que prendem e arrebentam, nas conhecidas palavras do presidente Figueiredo, desrespeitando as instituições e arvorando para si o monopólio da verdade e do poder de mando. Em que pesem algumas décadas de redemocratização, ainda impera entre nós a crença nos poderes ilimitados de um caudilho, de um salvador da pátria que resolveria, sem amarras e de supetão, todos os nossos problemas.
Como demonstra a história brasileira, essa cultura política pode nos conduzir ao arbítrio mais abjeto. Mais do que nunca, é preciso reafirmar o nosso compromisso com a democracia, lutar pelo seu aperfeiçoamento e repudiar, com rigor, a exaltação da ditadura.
Artigo escrito por Daniel Damasio Borges, professor associado da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP – câmpus de Franca e doutor em direito pela Universidade Paris I (Panthéon-Sorbonne).