De dimensões apocalípticas, a pandemia da Covid-19 suscita nos historiadores forte percepção na aceleração do tempo histórico e requer em paralelo apreciação acerca das tendências historiográficas em voga e as que advirão a partir de um evento de abrangência global e universalmente impactante.
É mais ou menos consensual afirmar que a emergência de fazeres historiográficos tais como: as mentalidades, a nova história, a história nova, a micro história, a história do cotidiano, a história cultural, a nova história política, a história dos vencidos, ou ainda, os novos temas, os novos objetos e os novos métodos se fixaram ao abrigo de fortes críticas direcionadas ao que se convencionou chamar de grandes narrativas.
As grandes narrativas, notem que a palavra narrativa é empregada de maneira pejorativa, passaram a ser tomadas como desqualificação crítica a gêneros historiográficos que, supostamente, se voltavam para memória e história de temas amplos como: guerras, revoluções, reinados e sistemas de preços e de movimentos identificáveis pelas cifras registradas numericamente e, sobretudo, nos quais as pessoas concretas estivessem ausentes em favor de categorias como classes sociais, eras, dinastias, pontos de máximos e de mínimos que, deliberadamente ou não, colocavam os sujeitos históricos em planos analíticos secundários preenchidos, “na boca da cena”, por representações sociais ou visões de mundo compartilhadas entre historiador e fatos/personagens/acontecimentos históricos.
Desse modo, o historiador passou a ser visto como aquele que, geralmente em seu ofício de produzir textos, correria o risco de se distanciar do que os documentos tratavam na medida em que, ao lidar doxas filosóficas, religiosas, ideológicas, sociais e políticas, incorreria em tomar determinados partidos e desposar visões de mundo professadas pelos personagens tratados não ultrapassando as recorrências e as intencionalidades contidas nos textos e só apreensíveis por intermédio de análise crítica dos tropos – figuras de linguagem – denunciadores daquilo que está apenas sub-repticiamente denotado/conotado.
Portanto, o ofício do historiador passou a ser o de desvendar intencionalidades discursivas e não o que “realmente” aconteceu, uma vez que o passado não comportaria verdades e nem a concretude de fatos, mas tão somente a maneira pela qual os personagens se viam no mundo, ou representavam suas angústias e agruras, sonhos e desejos, ou delírios e manias.
Do meado da década de 1970 até 2020 a marcação paradigmática deixou de ser as estruturas e passou a ser as linguagens e esse processo de mudança do foco teórico conceitual do campo historiográfico coincide com o declínio da polarização democracia x socialismo (EUA x URSS) em favor da emergência de aspectos culturais da crença e da religiosidade dos povos, da linguagem empregada na obra de arte, da intimidade, ou concepção de mundo de personagens encontrados nos mais diferentes lugares e tempos históricos.
Uma nova onda, uma nova história cultural que beirou a total relativização dos atos de fala de personagens produtores de discursos para os quais os historiadores se colocaram como intérpretes, havendo a forte chance ou possibilidade de personagens e historiadores se colocarem em patamares equivalentes de produção discursiva.
Ocorre, entretanto, que aos historiadores não é dado ocupar o lugar dos literatos e esse ofício segue sendo um ofício balizado exclusivamente pela interpretação de documentos, ou série deles, que possam assumir o papel de testemunhas de um período temporal.
Como periodizar é parte inextrincável do fazer historiográfico, todos nós sabemos que a pandemia inaugurou nova periodização, ou seja, a partir dela mudanças em série ocorrerão de modo que conjunção de mudanças inaugurará um novo período de tempo.
Ocorre que o inusitado reside em suas proporções planetárias, uma doença capaz de infectar todos os humanos viventes levando-os a morrerem às chusmas.
São qualidades decorrentes de quantidades absolutamente não desprezíveis que passam a atuar no planeta nos mais diferentes rincões e para os quais a morte deixa de ser algo que mereça lutos e exéquias para assumirem a condição de descarte de material contaminante com elevado potencial replicador de novos processos infecciosos.
Evidente que inúmeras perspectivas poderão ser extraídas desse colosso factual, tantas quantas forem os acometimentos, as curas, as recidivas e, acima de tudo o mais notável, carência de socorros proporcionais à avalanche de contaminações retratadas em curvas, assíntotas, hipérboles, enfim, a redução da hora da morte à condição do número que nos iguala em nossa intransferível individualidade.
Individualidade que revela muito mais do mesmo do que do excrescente, do inusitado. Uma individualidade que revela o quão em comum nós temos uns com os outros independentemente de desenvolvimento civilizacional ou particularidade de cultura.
Individualmente morreremos ou sobreviveremos, a lógica permite afirmar que sobreviveremos em maior número do que sucumbiremos, mas ainda assim estaremos expostos a semelhantes circunstâncias decorrentes de um sistema mundial que unificou, padronizou e estandartizou ciência e tecnologia, enquanto o vírus seguirá sendo o atestado de que a uniformidade sistêmica foi a grande desventura da humanidade nessa quadratura dos tempos.
Em suma, uma narrativa única possível sob dimensões nunca antes experimentadas documentalmente pela humanidade.
Daí as suas proporções apocalípticas.
Artigo escrito por Pedro G.S.Tosi – Docente do DECSPP, Departamento de Educação, Ciências Sociais e Políticas Públicas da FCHS – UNESP/ Franca (SP); ensina História Econômica na graduação em História e Princípios de Economia e Economia Aplicada ao Direito no bacharelado em Direito.