Diante da pandemia do coronavírus que assola o mundo, e o Brasil em particular, é preciso considerar algumas questões importantes, se queremos, de fato, enfrentar esta crise sanitária com fortes rebatimentos sociais, econômicos e políticos no Brasil.
O Brasil, país altamente desigual, o 7º mais desigual do mundo, segundo Relatório de Desenvolvimento Humano de 2019, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud); de um lado, em 2012, tínhamos 74 bilionários e em 2019, 206, que acumulam uma riqueza que corresponde a 17,7% do PIB nacional, do outro lado, há milhares de pessoas vivendo de forma miserável – miserabilidade expressa por 50% de sua população (104 milhões de pessoas) cuja renda per capita perfaz R$413,00 mensais, e 5% dos brasileiros (10,4 milhões de pessoas) que sobrevivem com R$51,00 mensais (IBGE/PNAD, 2019).
Também manifesta no alto índice de desemprego, são 12,6 milhões de brasileiros nesta situação; no trabalho informal, que assola 41,4% de seus trabalhadores (IBGE/PNAD, 2019), pelos baixos salários; falta de moradia – vide à população que vive nas ruas, só na cidade de São Paulo, foram estimadas cerca de 40 mil pessoas em 2019, pelo Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), ou em favelas, cerca de 12 milhões de pessoas, de acordo com o último Censo do IBGE; pela fome, e pelo alto índice de adoecimento decorrente, muitas vezes, desses fatores socioeconômicos.
Pois bem, como o coronavírus chega por aqui? Atinge a todos igualmente? Seguramente não.
A maioria da população brasileira não tem recursos socioeconômicos para “lidarem” com esta crise que se soma ao cotidiano de crise permanente em que tentam sobreviver.
Como lia num jornal de grande circulação no Brasil, em março, a fala de um morador de rua que dizia que eles só lavavam as mãos quando chovia, porque não tinham acesso à água. Estamos falando de acesso a água que é um bem natural vital para a sobrevivência, assim, como estas pessoas que vivem nas ruas sobreviverão a esta pandemia, a qual requer que lavemos as mãos, utilizemos álcool gel, dentre outras recomendações?
Ou, como os moradores das favelas e/ou precárias moradias brasileiras farão quarentena e manterão o isolamento necessário para frear o vírus? Como os milhares de brasileiros(as) que estavam desempregados e os que ficarão a partir de agora, somados aos trabalhadores informais sobreviverão a esta pandemia? Como os milhares de encarcerados brasileiros, pretos e pobres em sua maioria, serão protegidos para não sucumbirem ao coronavírus?
Este momento abre as nossas veias, parafraseando o escritor uruguaio Eduardo Galeano (As veias abertas da América Latina), deixando a nu as mazelas históricas destas terras.
Assim, para enfrentar a pandemia do coronavírus é preciso olhar para o nosso chão, a nossa gente, as nossas particularidades, as quais suscitam e suscitarão medidas sanitárias, econômicas e sociais urgentes e efetivas. Estou falando de quê? Estou falando da responsabilidade de todos os setores: Estado, sociedade civil e mercado. Mas quero destacar, neste artigo, as medidas estatais necessárias diante deste contexto.
O Estado brasileiro, mercado e parte da sociedade civil, vem veementemente defendendo medidas de ajuste fiscal para gerar o superavit primário, que tem reiteradamente beneficiado aos detentores do capital financeiro, só no ano de 2019 foram gastos 38,27% – R$1,038 trilhão, de acordo com a Auditoria Cidadã da Dívida (2020), do orçamento público federal para pagamento de juros e amortizações da dívida pública, dívida esta contraída muitas vezes sem motivação pública, mas com motivação privada, como vem alertando reiteradamente a Auditoria Cidadã da Dívida.
Sabem qual a parcela do orçamento público federal destinada às políticas de seguridade social (saúde, previdência social e assistência social) e à política de educação? Para a saúde 4,21%, previdência social 25,25%, assistência social 3,42% e educação 3,48%. (Auditoria Cidadã da Dívida, 2020). Pois bem, como enfrentar esta pandemia e toda a crise desencadeada por esta com este pífio orçamento para direitos sociais tão elementares? Destacando que a partir de Michel Temer na presidência decreta-se a Emenda Constitucional (EC) 95/2016, que congela por 20 anos os gastos primários (seguridade social e demais direitos sociais).
Se o Estado brasileiro continuar com seus rumos ultraneoliberais, em que o mercado importa mais que vidas humanas, não conseguiremos deter a crise instaurada.
Imediatamente, precisamos de medidas que socorram: à classe trabalhadora (subempregados, desempregados e trabalhadores que estão à beira de perder seus empregos); aos idosos que não usufruem de benefícios previdenciários e assistenciais; àqueles que vivem nas ruas e favelas; aos encarcerados; aos pequenos produtores rurais; às micro e pequenas empresas, que são no Brasil as que mais empregam a força de trabalho.
Sugerimos que estas medidas sejam financiadas pelo orçamento fiscal, este que é sugado anualmente para sustentar os bilionários nacionais e internacionais. Este orçamento é dinheiro público que advém dos impostos, taxas e contribuições que pagamos. Sugerimos que a E.C. 95 seja revogada, e que a EC 93/2016, que desvincula recursos da seguridade social, bilhões nos últimos anos, para o orçamento fiscal também seja revogada.
Assim, teremos, ao contrário do que propagam aos quatro ventos, recursos para financiar subsídios para os trabalhadores, sobretudo os informais. Somado a isso, a ampliação da per capita do Benefício de Prestação Continuada (BPC) de ¼ do salário mínimo para ½ salário mínimo, ampliando desta forma o acesso aos idosos que não acedem a benefícios previdenciários.
Também defendemos a inclusão de novas famílias no Programa Bolsa Família, que está congelado pelo atual desgoverno, que tinha, segundo o Jornal El País Brasil (2020), antes da pandemia do coronavírus, em média 1,7 milhão de famílias – 5 milhões de pessoas, aptas a serem atendidas por este programa, mas sem inclusão. Há dias atrás o desgoverno atual anunciou a inclusão de novas famílias, mas ainda sem dizer como o fará.
Lembrando que este Programa atende às famílias brasileiras miseráveis, e que o valor repassado não é suficiente para sanar as necessidades mais elementares, portanto, insuficiente para este momento de crise.
Ainda defendemos mais recursos para o Sistema Único de Saúde (SUS), seja para a compra de testes do coronavírus, necessários para controlar a pandemia, de acordo com as experiências de outros países, seja para ampliar o atendimento através de novos espaços e equipamentos, e sobretudo para propiciar condições de trabalho para seus trabalhadores que arriscam cotidianamente suas vidas.
Elencamos algumas medidas essenciais, mas defendemos que o Estado assuma sua responsabilidade de garantia de um pacote amplo e protetor de políticas públicas para que possamos enfrentar e superar este momento de crise.
Artigo de Patrícia Soraya Mustafa, doutora em Serviço Social. Professora de Política Social no curso de Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UNESP, campus de Franca/SP). Pesquisadora na área de Política Social e Seguridade Social.