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Artigo: A saúde como pauta do dia, por Edvânia Ângela de Souza

Os Estados Unidos registraram 1.169 mortes pelo novo coronavírus nas últimas 24 horas (um triste recorde mundial que eleva o total de vítimas no país para 6.058. Mais de 245.000 pessoas contraíram a Covid-19 nos EUA, que lideram também o número de casos confirmados em todo o mundo. A Espanha superou a Itália em número de pessoas infectadas, e tem ao menos 10.935 óbitos confirmados desde o início da crise até esta sexta-feira. No Brasil, 299 pessoas morreram e havia 7.910 pessoas infectadas, segundo o mais recente boletim do Ministério da Saúde. Em todo o mundo, mais de um milhão de pessoas contraíram o vírus Sars-Cov-2, e mais de 53.000 perderam a vida (EL PAÍS, 01, abr., 2020).

O destino funesto delineado pela pandemia ocasionada pelo novo coronavírus, nesse início do ano de 2020, evidencia a política de saúde pública como um importante cerne da sociedade, contribuindo para o sucesso ou fracasso da economia, fracassando, ainda que provisoriamente, o modelo neoliberal, até então, adotado com veemência nos mais diversos países.

Todo o episódio mostra a necessidade de se aproximar intelectualmente, racionalmente e cientificamente para compreender e intervir nessa pandemia da COVID-19. Mais ainda, é preciso também um olhar filosófico capaz de sustentar definições garantidoras do bem-estar geral, mesmo que afetando provisoriamente a produção e a circulação de mercadorias, incluindo a força de trabalho.

Entretanto, em tais circunstancias, é característico o dilema posto entre preservar a saúde coletiva ou manter a economia. Devido a infinita possibilidade de contaminação do novo coronavírus, COVID-19, e respectivos problemas que vão desde a demanda por realização de testes para verificar a possível contaminação até o acesso aos serviços, sobretudo, os mais complexos, tais como as unidades de tratamento intensivo (UTI) e a perspectiva letal, que pode, segundos especialistas, levar a um milhão de mortes no Brasil, caso medidas de prevenção e contenção não sejam adotadas. A singularidade da questão leva a um grande questionamento: é possível conciliar a saúde coletiva e a permanência dos hábitos econômicos?

Na prática, o Brasil, que já vem de uma situação de polarização política, se vê novamente dividido em dois campos ideológicos fundamentalmente distintos, o da defesa da saúde coletiva e, de outro, a defesa do mercado.

O próprio governo está dividido. Enquanto o ex-ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, vestiu o colete com o simbolo do Sistema Único de Saúde (SUS) se posicionando a favor da contenção do vírus, portanto, das medidas de isolamento; qualitativamente diverso, o presidente Jair Bolsonaro  (sem partido) e um grupo de empresários agem em colisão com os indicativos feitos pelo ministro da saúde e pela Organização Mundial de Saúde (OMS). A questão posta: defender a vida ou defender o mercado?

A compreensão da propagação do vírus COVID-19 nos remete a diretriz da história para compreender a importância da política de saúde pública no Brasil, inclusive para o mercado.

O desenvolvimento econômico e político brasileiros, dentro do padrão de economia dependente, desde da constituição do Estado Nacional, em 1821, mas com muito mais êxito a partir da instauração da República, em 1889, quando o mercado interno ganhou ares de expansão, enfrentou também forte resistência por parte de um inimigo comum: a epidemia de varíola que dizimava vidas, o que demandou o enfrentamento desse problema pelo Estado.

Isto é, quando se implementou ações coordenadas e institucionalizadas de saúde no início do século XX, no momento em que a economia precisava de uma população salubre para o trabalho, ainda que esse ocorresse, na maioria das vezes, em péssimas condições e de maneira insalubre.

Mão de obra com capacidade para o trabalho para a recém indústria que estava sendo implantada, para a rede de serviços que se expandiria em conjunto com aquela e para o exército e força policial, são demandas da República instaurada nos idos de 1889 e intensificadas a partir da  ocorrência da epidemia de varíola, que assolou o povo brasileiro, bem no início do século XX, 1904.

No mundo, a razão econômica, o desenvolvimento da ciência e a formação do Estado Moderno já haviam suscitado a necessária estrutura da política de saúde pública, inclusive para conter epidemias e insatisfações sociais (ROSEN, 1994).

Foto: Divulgação/Prefeitura de Franca

No Brasil, a epidemia de varíola e a demanda de força de trabalho salubre levaram a institucionalização das primeiras ações de saúde pública, mas isso ainda muito limitado às áreas comercias e de maior prestígio do mercado agroexportador (MASSAKO, 1994).

A instituição da primeira Diretoria de Saúde Pública, em 1904, ficou a cargo de profissionais renomados, nacional e internacionalmente, entre eles se destacam Emílio Ribas e Osvaldo Cruz, que adotaram o modelo americano de combate às doenças: febre amarela, lepra e varíola.

Osvaldo Cruz impôs a obrigatoriedade da vacina antivaríola, a qual não veio sozinha, mas foi acompanhada de inúmeras prescrições, como andar calçado, ainda que a maioria das pessoas nem calçado tivesse, entre outras medidas governamentais e jurídicas que para tornar a capital do Brasil, na época a cidade do Rio de Janeiro, um centro “limpo e ordeiro”, promoveu-se, entre outras medidas, a expulsão das famílias, com o objetivo de ampliar as ruas, criar avenidas e tornar o centro um ambiente para os bancos e respectivos negócios.

Os pobres, especialmente ex-escravos, que não receberam qualquer reparação econômica, social ou de cidadania, após praticamente 400 anos de escravidão, se acumulavam em cortiços, antigos casarões de café, que com a crise econômica vivenciada pelo setor, passaram a ser alugados à várias famílias e de pessoas pobres que trabalhavam ou estavam em busca de trabalho.

A expulsão dessas famílias das casas onde residiam e a impossibilidade de se recorrer à justiça para a garantia de moradias levaram muitas dessas famílias a ocuparem os morros da cidade do Rio de Janeiro e a construírem casas de lata ou de materiais parecidos na sua incapacidade de proteção, qualidade e durabilidade, dando origem ao problema estrutural de moradias, tão presentes nos dias de hoje.

Sevcenko (1984) diz que as demolições previstas para o redesenhamento da cidade e a construção da avenida Rio Branco deixaram mais de 14.000 pessoas desabrigadas e o possível pagamento de indenizações foi totalmente insuficiente e, na maioria das vezes, inacessível.

Essas medidas e a obrigatoriedade da vacina contra varíola selaram o primeiro movimento de resistência, na área da saúde, conhecido como Revolta da Vacina (SEVCENKO, 1984).

Vencida a Revolta da Vacina, movimento muito heterogêneo, que contou com a participação de membros das famílias que se viam afetadas, mas também de pessoas que buscavam apenas fazer uso político do movimento, assim, após 14 dias de conflito armado, o governo revogou a obrigatoriedade da vacina, mas manteve a política de saneamento do porto e redesenhamento da cidade, o que significava ampla expropriação e expulsão de famílias inteiras desses espaços. Todavia, é a partir desse momento que a República institucionaliza algumas ações de saúde pública.

Apesar dessa ampla digressão histórica para estabelecer um parâmetro do pensamento em torno da atual pandemia da COVID-19, busca-se aqui evidenciar as pretensões políticas e econômicas, embora totalmente distintas das perspectivas de saúde pública ou até mesmo antagônicas, entretanto, há de reforçar o seu nexo com o processo de instauração e estruturação da política de saúde pública.

Aqui, então, é preciso fazer um destaque importante para esse debate: a política de saúde pública é um elo fundamental da sociedade, inclusive para o desenvolvimento econômico.

Foto: Divulgação/Agência Brasil

A incursão histórica demonstra que as adversidades e os flagelos que acometem a saúde e a vida em sociedade exigem por seu turno a forma estatal, são pequenas vagas abertas, que, no Modo de Produção Capitalista, fazem com que o Estado, sempre a serviço dos interesses da classe dominante, acaba tendo, ainda que por tabela, que voltar os olhos para a sua população e respectivas condições de vida, mas isso está dependente do nível de organização da classe trabalhadora e da sua capacidade de erguer os olhos para além dos fatores mais imediatos, garantindo assim ganhos mais duradouros, que certamente estão mais acima do fato de apenas se manter trabalhando, antes é preciso manter a vida e, para isso, a política de saúde joga um papel fundamental.

Isso depende também da consciência a respeito da saúde como um bem público, portanto, é preciso recuperar o papel histórico que a classe trabalhadora, representada nas formas sindicais, associações, partidos e demais movimentos desempenharam junto ao Movimento de Reforma Sanitária Brasileiro (MRSB) para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) na Constituição Federal de 1988 (CF/1988).

Na prática, o mais importante na nossa concepção é retomar a consciência sanitária que serviu de base para o MRSB, que criticou o conteúdo e a forma da política de saúde brasileira que até a CF\1988 tinha um papel restrito na sociedade, considerando que estava dividida em Saúde Previdenciária, destinada aqueles que tinham registro em carteira de trabalho e em saúde pública destinada às ações gerais de vacinação e atendimentos a\o(s) desempregado\a(s), subempregado\a(s), vistos como indigentes.

Ademais, privilegiava-se o setor privado na compra de consultas e atendimentos em clínicas e hospitais particulares em detrimento da estruturação da rede pública de saúde, assim, todo o dinheiro gasto em saúde, em grande parte, era consumido pelo setor privado, inexistindo uma estrutura de saúde pública para atenção em saúde, considerando o acesso aos serviços de saúde propriamente dito e aos insumos, medicamentos, laboratórios, diagnoses, entre outros.

O MRSB ocupou um papel decisivo para que a saúde fosse reconhecida como um direito universal, independente do vínculo empregatício, bem como de qualquer outra característica ou condicionamento. A saúde foi garantida como um direito de todos e dever do Estado, como reza o artigo 196 da CF/1988, implantando uma ampla rede de serviços divididos em três níveis de atenção: primário, secundário e terciário.

Já essa constelação conhecida por toda a sociedade, mas sempre de modo muito naturalizado, como se o SUS sempre estivesse estado aí, quando na verdade é um jovem sistema de apenas 30 anos de idade, incompletos.

Como parte do SUS, existe uma rede de serviços, como a Vigilância em Saúde, ainda desconhecida ou pouco visível e valorizada pelo conjunto da sociedade e que, nesse momento, ganham um papel decisivo, inclusive a transparência exigida no enfrentamento da COVID-19 requer um serviço de vigilância epidemiológica, com sistema e funcionamento adequados para a notificação correta dos casos.

Aqui, o destaque para as palavras indicadas se deve aos estudos que já realizamos (LOURENÇO, 2009), em termos de notificação de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho, verificando que ainda existe uma ausência de cultura para a notificação e um despreparo de trabalhadore\a(s) da saúde para os registros\notificações.

No geral, apesar dos avanços trazidos pelo SUS, ainda falta a preparação e qualificação técnica das trabalhadoras e trabalhadores da saúde, incluindo o corpo médico,  quanto a importância dos dados epidemiológicos e de registros bem feitos, pois é muito comum os registros, que quando ocorrem, são feitos de forma incompleta, assim, os dados são sempre inconsistentes.

Nesse sentido, há que se destacar que a velocidade da ação do governo para achatar a curva da contaminação depende de dados confiáveis, assim, como a consciência sanitária da população em torno do problema e da adoção de práticas responsáveis de contenção e prevenção também estão dependentes desses dados.

Aqui se destaca também a importância de se pensar em cuidados e medidas protetivas para o\a(s) profissionais da saúde, além dos Equipamentos de Proteção Individual (EPI), uma vez que estão mais expostos ao vírus e toda a sociedade depende desse\a(s) profissionais, os quais estão na linha de frente nessa guera contra o vírus.

Também não se deve esquecer o papel das universidades e centros de pesquisas, que podem  construir estudos confiáveis e capazes de orientar as políticas públicas.

Foto: Rodney Martins/Divulgação

Não há espaço nessa breve reflexão de tratar das várias ofensivas que o SUS e toda a rede de proteção social vem sofrendo com o neoliberalismo, que ganhou novos patamares de absorção pelo Estado brasileiro a partir de 2016, quando inclusive foi editada e aprovada a Emenda Constitucional no. 95, a qual congelou os gastos primários, incluindo aí todas as política sociais, ciência e tecnologia por 20 anos.

Acrescentem-se a isso ainda, as necessidades ideológicas do atual presidente  em inviabilizar o pensamento social crítico, bem como o  funcionamento das universidades e da pesquisa, com duros cortes em bolsas  dos Programas de Pós Graduação.

Essa alusão às medidas neoliberais e ao ataque às universidades evidenciam os traços mais gerais e grosseiros da política brasileira, que insiste em se repetir no caso da COVID-19. Entretanto, a pandemia, por seu turno, aponta acertadamente para a singularidade da situação que as universidades e centros de pesquisa ganham relevância para subsidiar ações políticas e políticas públicas.

Aqui, se faz uma referencia especial a FIOCRUZ, que, com antecedência e qualidade, desenhou o teste para o referido vírus, ainda que esse não deve ficar localizado apenas na FIOCRUZ e que a realização do teste demanda certos tipos de insumos, que repõe novamente o papel do Estado, inclusive no fortalecimento da indústria nacional. Destaca-se a relevância da FIOCRUZ, enquanto instituição pública e a favor do bem comum e não da mera lucratividade. Afinal, é para a propriedade específica da intervenção em saúde, considerando a natureza do problema, as suas interações e inter-relações que pesquisas vem sendo realizadas.

As respostas vão muito além do setor saúde, por exemplo, não se trata somente de testar a população para saber quem está contaminado, de realizar as notificações construindo um banco de dados epidemiológicos, regular as vagas nos hospitais com leitos para a internação nas UTI’s, desenvolver pesquisas a respeito das pessoas infectadas, das melhores formas de tratamento, dentre outros, são necessárias outras medidas, por exemplo, as de transferência de renda, que garantem a sobrevivência das pessoas.

Assim, nesse cenário de pandemia protagonizado pelo novo coronavírus, COVID 19, espera-se que haja o retorno do papel do Estado na elaboração e manutenção das políticas de proteção social, com destaque para a saúde, que a classe trabalhadora e toda a sociedade possam vestir a camisa do SUS, como ocorreu no evento da 8a Conferência Nacional de Saúde (8aCNS), quando o debate a respeito da saúde se tornou pauta do dia (BRAVO, 1996).

Para que o direito à saúde e à democracia não sejam palavras gastas e vazias, o momento histórico requer o protagonismo de um personagem fundamental e insubstituível: o povo (p.57, PAIM).

Referências

Jr. Edvânia Ângela de Souza, Maria Inês de Souza. Serviço social e reforma sanitária: lutas sociais e práticas profissionais. São Paulo: Cortez, 1996.

EL PAÍS. AO VIVO | Últimas notícias sobre o coronavírus no Brasil e no mundo. Pandemia Coronavírus. EL PAÍS, 03, abr., 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-04-03/ao-vivo-ultimas-noticias-sobre-o-coronavirus-no-brasil-e-no-mundo.html. Acesso em: 01, abr., 2020.

LOURENÇO, Edvânia Ângela de Souza. Na trilha da Saúde do Trabalhador: a experiência de Franca. Franca: UNESP, 2009.

PAIM, Jairnilson, Silva. Direito à Saúde, Cidadania e Estado.  Anais da 8a Conferencia Nacional de Saúde (8a.CNS). Ministério da Saúde. Brasília: DF., 1986. Disponível em: file:///home/usuario/Documentos/ANAIS%20DA%208A%20cns%201988/8conf_nac_anais.pdf. Acesso em: 01, abr., 2020.

MASSAKO, Iyda. Cem anos de saúde pública. São Paulo: editora Unesp, 1994.

ROSEN, Gorge. Uma história da saúde pública. São Paulo: editora Unesp, 1994.

SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: ensaiada em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984.

Edvânia Ângela de Souza é assistente social. Profa. Dra. do Departamento de Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS), UNESP-Franca. Profa. Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais – PPGSSPS – Mestrado Acadêmico da UNIFESP-Baixada Santista.

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