Além de garantir o direito à saúde, a Constituição Federal de 1988 determinou que a União, Estados e municípios devem agir e legislar com a finalidade de assegurarem o exercício desse direito. Assim, questões relativas à saúde pública não são da alçada exclusiva de nenhum dos entes da Federação brasileira. Todas essas entidades têm a obrigação constitucional de tomarem medidas efetivas para fazer face à grave crise sanitária que atravessamos.
Idealmente, sob o modelo do assim chamado federalismo cooperativo, cada ente deveria atuar de modo concertado e coerente, por meio do auxílio mútuo e de ações coordenadas, para que o objetivo de proteção à saúde seja alcançado com o maior êxito possível.
Sucede, porém, que divergências políticas muitas vezes impedem que essa cooperação ocorra na prática. Diferenças partidárias e de perspectiva de análise dos problemas sociais são obstáculos à essa ação concatenada.
É o que tem ocorrido com a recente pandemia do coronavírus. O Governo federal tem minimizado o problema e sido negligente, ao passo que Estados e municípios impuseram medidas bem mais rígidas, a exemplo de restrições à circulação de pessoas com vistas a desacelerar a propagação do vírus e a evitar o colapso do sistema de saúde com o aumento repentino de doentes infectados.
Diante de tal descompasso, é pertinente a seguinte indagação: Estados e municípios podem impor tais medidas, ainda que elas contrariem determinações do Governo federal e de leis federais?
Desde o caso da lei gaúcha sobre o uso dos agrotóxicos do início dos anos oitenta, o STF decidia reiteradamente que a lei federal devia prevalecer sobre a lei estadual, em nome da preservação da harmonia e da unidade da federação brasileira. Assim, leis estaduais mais avançadas em matéria de saúde pública eram consideradas inconstitucionais, sob o fundamento da preservação da homogeneidade da legislação em todo o território nacional.
Todavia, o recente julgamento da lei paulista sobre o amianto – mineral cancerígeno muito usado na construção civil – representou um ponto de inflexão no federalismo brasileiro. Na espécie, tratava-se de saber se a lei paulista poderia proibir a comercialização do amianto, contrariamente à lei federal que a autorizava.
Rompendo com o seu entendimento tradicional, o STF estimou que uma lei estadual poderia contrariar a norma federal e vedar tal mineral nocivo à saúde pública. Os Estados foram, então, autorizados a editar leis sobre saúde pública mais protetivas que a legislação federal, corrigindo as falhas e insuficiências dessa última. As preocupações humanistas com a integridade física e psíquica das pessoas preponderam sobre a busca da uniformidade legislativa. Para o STF, o direito constitucional à saúde há de predominar sobre qualquer outra consideração.
Por conseguinte, se o Governo federal for displicente no enfrentamento da pandemia do coronavírus, cabe aos Estados e municípios suprirem essa lacuna e se mostrarem à altura do extraordinário desafio que enfrentamentos.
*Daniel Damasio Borges é professor associado da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP – câmpus de Franca e doutor em direito pela Universidade Paris I (Panthéon-Sorbonne).