Ícone do site F3 Notícias

Estudo revela ‘teto de vidro’ agindo contra ascensão feminina no Poder Judiciário

Foto: OAB Franca/Divulgação

A busca pela igualdade de gênero na sociedade, imposta pela Constituição de 1988, encontra uma barreira invisível no Poder Judiciário brasileiro. As magistradas têm se deparado com um “teto de vidro” institucionalmente construído, responsável por solapar a participação feminina e prejudicar de maneira fatal a progressão de carreira.

Enquanto as mulheres representam 51,1% da população brasileira, segundo o IBGE, na magistratura elas respondem por 38,8% dos 18 mil cargos ocupados. Dados do Conselho Nacional de Justiça de 2019 mostram que a presença feminina diminui drasticamente conforme a evolução na hierarquia institucional.

No caso da Comarca de Franca, são 19 vagas de juízes na cidade e há cinco mulheres como juízas na Primeira Instância da Justiça Estadual.

Essa diferença não ocorre por acaso. Em teoria, seria possível argumentar que trata-se de um longo processo de aumento da equidade de gênero: seria preciso mais mulheres na base da carreira para que, em algumas décadas, essa representatividade subisse também nas posições mais elevadas.

No entanto, há uma queda no ingresso feminino na magistratura. O mesmo levantamento do CNJ indica que, entre 2000 e 2009, o número de mulheres ingressantes no primeiro grau — via concurso, portanto — chegou a um auge histórico de 41%. Entre 2010 e 2018, regrediu para 34%.

Essa sub-representação é motivada pela existência de oito barreiras, de acordo com a juíza Mariana Yoshida. Autora de uma dissertação sobre o tema, ainda a ser publicada pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), ela apresentou os resultados em evento do Conselho Nacional de Justiça.

A primeira dificuldade é exatamente de ingresso na magistratura, seguida por barreiras como a maior afetação da vida pessoal em relação aos homens, o que leva a perda de oportunidades de ascensão e a menor promoção pelo critério do merecimento e indicação para cargos de confiança. O estudo de Yoshida cita também atitudes discriminatórias sofridas por mulheres.

A dissertação tem como recorte analítico os tribunais de segundo grau. Para a pesquisadora, esse é o ambiente mais hostil enfrentado pelas mulheres no Judiciário, onde a discriminação é dos próprios pares. No primeiro grau, os relatos são de atos discriminatórios por advogados e partes dos processos.

“Isso demonstra o teto de vidro. Temos obstáculos, sim, mas são invisíveis porque não são expressos. Como não conseguimos chegar ao topo, batemos a cabeça no teto de vidro”, disse Mariana Yoshida a uma plateia predominantemente feminina presente na sede do CNJ.

Pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas, Karina Denari destacou que o ingresso de mulheres na carreira gera algum manejo no número de vagas, mas não reverbera uma real diminuição da ocupação masculina desses espaços. É o que mostra um estudo feito por ela para a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) sobre a participação feminina em cortes constitucionais.

O próprio CNJ, criado pela Emenda Constitucional 45/2004 para pensar e planejar o Poder Judiciário, opera em flagrante desigualdade de gênero, conforme relatório divulgado pelo órgão. Sua composição é de representantes dos ramos da Justiça (exceto a Militar), do Ministério Público Federal, da advocacia e da sociedade civil.

Nesses 18 anos, das 120 indicações aprovadas, apenas 24 foram de mulheres, o que representa apenas 20% do total. O Superior Tribunal de Justiça e os Tribunais Regionais Federais são os ramos que enviaram mais representantes ao CNJ.

A OAB, que em 2021 viu o número de advogadas inscritas superar o de advogados, teve a oportunidade de fazer 18 indicações, nas quais optou apenas uma vez por uma mulher. Essa conta é afetada pela possibilidade de haver reconduções ao cargo. Isso ocorreu em cinco oportunidades, todas elas para manter homens na função de conselheiro do CNJ.

Cotas e outros caminhos
Autora de uma pesquisa ainda não publicada sobre a percepção das magistradas sobre formas de vencer a sub-representação na carreira, a juíza do Tribunal de Justiça de Pernambuco Eunice Prado apresentou resultados que mostram quais atitudes concretas as mulheres esperam do Judiciário para superar essa questão de igualdade.

As respostas das entrevistadas indicam a necessidade de maior participação feminina nas bancas examinadoras dos concursos de ingresso na magistratura, nas mesas de evento nas escolas judiciais e nos cargos de administração dos tribunais.

O trabalho ainda levanta uma reflexão sobre o estigma que a discussão sobre cotas femininas causa. Para se ter uma ideia, 83% das mulheres que responderam à pesquisa se mostraram favoráveis a “nomeação paritária para cargos de alto escalão, com reserva de vagas”. Quando a indagação foi sobre “políticas de cotas de gênero”, o apoio das mulheres caiu para 64%.

“Vejam que estamos dizendo a mesma coisa nesses dois casos. A palavra ‘cota’ precisa ser melhor explicada. As pessoas precisam entender melhor, para que tirem esse estigma. Em alguns tribunais, a cota é totalmente necessária, senão vai levar dois séculos e meio para ter alguma paridade de gênero, e isso nós não podemos esperar”, afirmou a juíza.

A representatividade feminina exige sustentabilidade de politicas, segundo Karina Denari. “Não é porque foi nomeada a primeira mulher em algum cargo que é possível manter a representatividade feminina adequada. São necessárias políticas permanentes, com elevado grau de seriedade para que a representatividade se estabeleça e continue. E é importante o monitoramento pela sociedade civil.”

“Existe, sim, uma cota para homens brancos nos tribunais brasileiros. Ela existe e é imutável”, apontou a juíza federal Adriana Cruz, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Para ela, é preciso derrubar as estruturas institucionais que favorecem um cenário que dá ao homem o direito adquirido de ser mediano e, ainda assim, ocupar espaços e progredir.

“Seguir as regras como sempre existiram não vai levar a lugar nenhum. Precisamos reescrever as regras. Não tem jeito. Pode chamar de cota, do que quiser. Se não houver ação afirmativa, vamos continuar fazendo um milhão de seminários e trazendo diagnóstico de como não estamos nesses espaços”, disse.

Presidente da Comissão Anamatra Mulheres, da associação de classe da Justiça do Trabalho, Luciana Conforti narrou por que juízas perdem promoções por questões intrinsecamente ligadas ao gênero: maternidade, amamentação, violência nos fóruns, entre outras. “Tudo impacta, e assim ela não conseguirá progredir na carreira se o Judiciário não tiver esse olhar atento para suas questões internas.”

Essas soluções dependem do desenvolvimento de políticas concretas. Daí a importância da proliferação de estudos como os apresentados. “Todas sabemos a realidade, graças à nossa percepção pessoal. Mas agora temos trabalhos concretos científicos com identificação de problemas para a proposição de medidas como solução”, exaltou a desembargadora do TRF-4 e conselheira do CNJ Salise Sanchotene.

Duas lideranças femininas
A necessidade de evolução por dentro também foi destacada na fala da ministra Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal e do CNJ. “A presença de mulheres em todas as instâncias e ramos do Judiciário é exigência de uma sociedade plural e condição da efetiva representatividade das decisões judiciais.”

Presidente do Superior Tribunal de Justiça, a ministra Maria Thereza de Assis Moura afirmou que cumpre a cada órgão do Judiciário manejar ações concretas para assegurar a efetiva participação feminina. A presença dessas duas mulheres à frente das cortes superiores é um exemplo dos avanços da participação feminina, mas também um indicativo do longo caminho a percorrer.

Segundo o Corregedor Nacional de Justiça, ministro Luis Felipe Salomão, essa luta deve ser diária, pela atuação das magistradas em cada sessão. Só assim será possível vencer a ideia de assimetria de gênero que vem ganhando corpo no Judiciário. “Tudo isso é motivo para pesquisarmos um pouco mais e entendermos o que vem acontecendo nesse movimento.”

Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, o ministro Lélio Bentes Corrêa reconheceu que a “regra do clube do bolinha” pode ser claramente vista na formação de listas para promoção aos tribunais regionais de segundo grau. “A nossa magistratura branca masculina heteronormativa não reflete a sociedade brasileira”, disse ele. “É urgente a mudança desse paradigma.”

Por fim, o desembargador federal do TRF-2 Roger Raup Rios propôs uma reflexão sobre o tipo de representatividade de gênero que deve ser buscada no Poder Judiciário. Em sua visão, apenas ter mais mulheres é definitivamente importante, mas não resolve a questão. “Não basta ter mulheres que reproduzem estereótipos do machismo quando chegam aos cargos. Mulheres que, por falta de perspectiva critica, reproduzem padrões até mesmo sem perceber. É preciso que se avance em perspectiva crítica.”

“Discutir igualdade é uma das forma mais eficientes de combater violência contra mulher. Fazer isso no Judiciário é olharmos para dentro de casa e reconhecermos que temos papel importante a cumprir para chegarmos a essa conquista”, ressaltou o juiz federal e conselheiro do CNJ Márcio Luiz Coelho de Freitas.

*Matéria Conjur, com F3 Notícias

*Para acompanhar o F3 Notícias, curta nossa página no Facebook, no Instagram e pode também ajudar a divulgar informações, publicar fotos ou tentar auxiliar em alguma dúvida a partir no nosso Whatsapp no (16) 9 9231-0055

This website uses cookies.

This website uses cookies.

Sair da versão mobile